Dos zines aos biograficzines

Dos zines aos biograficzines:
narrativas visuais no processo de formação continuada de docentes-pesquisadores

Gazy Andraus;
Elydio dos Santos Neto

O biograficzine é um fanzine (do inglês fanatic + magazine : revista do fã) que tem por objeto as histórias de vida: contar experiências de vida e formação tendo como objetivos principais o autoconhecimento, a partilha de narrativas pessoais com outros, o trabalho com as imagens e o desenvolvimento de autoralidade. Esta experiência foivivida no Mestrado em Educação da Universidade Metodista de São Paulo, com a participação dos autores deste texto. A experiência ocorreu em dois semestres: a primeira vez, no primeiro semestre de 2008, no Seminário Temático “Formação de Educadores, narrativas autobiográficas e histórias em quadrinhos”; a segunda vez, no primeiro semestre de 2009, no Seminário Temático “Cultura Visual e Formação de Educadores: um estudo a partir das histórias em quadrinhos”.

O ponto de partida da experiência foi a consideração de que houve um tempo em que se acreditava que para formar bem um professor/a era suficiente o domínio intelectual do conteúdo que ele/a iria ministrar além, é claro, do conhecimento de algumas técnicas didáticas. De fato, durante um tempo em que as relações educativas estiveram marcadas pela formalidade e, em muitos casos, pela atitude burocrática tanto do professor/a como dos alunos/as, talvez isso tenha sido suficiente, mas hoje, com certeza, embora sejam saberes muito importantes não são, contudo, suficientes.

Vivemos um tempo em que está mais claro, para nós professores/as, que a construção do conhecimento se faz no contexto da relação pedagógica, isto é, no encontro entre o professor/a como pessoa e os/as alunos/as como pessoas. E como desenvolver capacidade dialogal, escuta sensível, autonomia e autoralidade sem autoconhecimento? Sem rever, nas raízes da própria trajetória formativa, as tendências educativas que estabeleceram as bases da postura de hoje? Sem partilhar estas experiências com outros/as colegas e, na troca, aprender com o/a outro/a? Estas foram as nossas primeiras motivações que nos levaram à experiência com o biograficzine, que nasceu dos fanzines.

Os fanzines têm uma história longa que vai das actas diurnas romanas, passando pelos menestréis e bardos medievais, trabalhos do artista, do século XVIII, William Blake, bem como as cartas lidas e copiadas no Renascimento, encontrando os primórdios dos jornais e, por fim, chegando a criação de jornais, revistas e fotocopiadoras que baratearam e facilitaram esse desenvolvimento, até culminar nos fanzines (ou zines), mídias paratópicas  e revistas temáticas independentes extremamente diversificadas e criativas.

Como já dissemos anteriormente, o biograficzine é um fanzine que une as duas necessidades formativas que destacamos acima. Retomar a trajetória formativa pessoal, com a provocação da pergunta: Como me tornei o ser humano profissional que sou hoje? E partilhar, utilizando imagens e a linguagem das histórias em quadrinhos, muito presente nos zines, a reflexão sobre a própria trajetória com outras pessoas envolvidas no mesmo tipo de processo formativo.

Como foi desenvolvido num ambiente de mestrado em educação, foi necessário estar atento àquilo que são objetivos deste segmento formativo: a formação do pesquisador na área da educação e o aperfeiçoamento de sua ação como docente do ensino superior. Para isso encontramos em Antonio Nóvoa (1988), Christine Josso (1988) Franco Ferrarotti (1988) e Paulo Freire (1982) elementos teóricos que nos guiaram no trabalho com histórias de vida e formação.

Para atender a todas estas necessidades o trabalho foi organizado por etapas ao longo das quais foi sendo construída, de maneira crítica e reflexiva, a trajetória formativa e foi sendo elaborado o biograficzine: uma narrativa visual sobre a experiência formativa dos mestrandos no formato de um fanzine muito específico, pois notadamente autobiográfico.

Oficinas, mostras, diálogos em torno da fanzinagem, dos quadrinhos e, depois, a mão na massa mediante as tarefas de criar um roteiro, desenhar, recortar figuras, fazer colagens, compor a própria narrativa foram algumas das atividades que ocuparam os mestrandos após os estudos teóricos sobre as histórias de vida e formação.

Helena: fanzines como expressão biográfica
Helena: fanzines como expressão biográfica

Escolhemos o biograficzine resultante da oficina “Helena em: E a história continua… Sempre!”, de Maria Helena Negreiros e José Luis O. Junior, seja por conta da qualidade das imagens elaboradas para narrar a experiência de Helena como professora, seja por conta da profundidade contida na conjugação imagem-texto, própria da linguagem dos quadrinhos.

A ilustração da capa do biograficzine já é, por si só, uma imagem e uma metáfora muito interessante da profissão professor/a: Helena se equilibra sobre uma pilha de livros e, ainda, equilibra três pratos girando sobre varetas em cada uma das mãos e em um de seus pés. A imagem sugere a tensão, o esforço, o cansaço, o empenho permanente de equilíbrio para manter-se como professor/a. Será possível suportar isso o tempo todo?

De fato, na primeira página da narrativa de Helena, ela já aparece no chão com os pratos quebrados, os livros espalhados e com a experiência de “exercitar a tristeza, o medo, a insegurança e porque não, o cansaço negado por tanto tempo”. A narrativa sugere que é um momento de crise que exige retomar a própria história para tentar compreender, se possível, o que está sendo vivido. E assim Helena começa uma viagem imagética que se inicia em Mossoró, no Rio Grande do Norte e chega a São Paulo, passando pelas escolas em que estudou, pela formatura até ver-se frente ao desafio de subir as escadas do campo da educação… Equilibrando pratos. No caminho uma surpresa: o poder/político – representado por um homem careca, de óculos escuros e que fuma charutos – lhe oferece um tapete mágico. A possibilidade de voar, mas sempre com muito que fazer: “Nos seus registros, família, nem sempre em primeiro plano, viagens, sonhos, medos, congressos, fóruns, seminários, defesas, retratações…”. E, de repente, quando a equilibrista de pratos está sendo admirada e aplaudida, acontece uma nova surpresa: o poder/político puxa-lhe o tapete. “O tapete era uma concessão, com tempo marcado para terminar, independentemente de minha dedicação… o vôo acabou! BUUUUUMMMMM!” Helena no chão… Aos cacos.

A narrativa termina com Helena juntando, com uma vassoura, os próprios cacos. E diz, talvez sob inspiração de Walter Benjamin que afirma que as crianças constroem história a partir do lixo da história: “Sorriso no rosto, força nas mãos e coragem na alma! A história continua… Sempre!”.

O biograficzine de Helena nos parece um exemplo de como a narrativa visual pode servir não apenas aos processos de elaboração integradora das experiências vividas no campo profissional, no exigente caminho de profissionalização da carreira docente, mas também para retomar, de maneira expressivamente estético-prática, na formação continuada de professores, que “é impossível separar o eu pessoal do eu profissional”. Neste sentido a cultura visual emerge como um horizonte rico e interessante para a formação de docentes-pesquisadores, horizonte que, nos parece, precisa ser melhor considerado e explorado no referido campo.

Referências

ANDRAUS, Gazy. A independente escrita-imagética caótico-organizacional dos fanzines: para uma leitura/feitura autoral criativa e pluriforme. Trabalho apresentado ao Eixo 14 – Escritas, Imagens e Criação: Diferir no 17º. COLE. Campinas, julho de 2009.

FERRAROTTI, F. Sobre a autonomia do método biográfico. In: NÓVOA, A. & FINGER, M. (Orgs.) O método (auto) biográfico e a formação. Lisboa, Ministério da Saúde, 1988. p.17-33.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 11ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

JOSSO, C. Da formação do sujeito… ao sujeito da formação. In: NÓVOA, A. & FINGER, M. (Orgs.) O método (auto) biográfico e a formação. Lisboa, Ministério da Saúde, 1988. p.35-49.

MAGALHÃES, Henrique. O que é fanzine. São Paulo: Brasiliense, 1993.

RAINE, Kathleen. William Blake. London: Thames & Hudson, 1970.

SANTOS NETO, Elydio dos. Reinvenção do educador, visualidade e fanzinagem.RevistaDebates em Educação Vol. 2, No. 3 (2010), Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Alagoas. http://www.seer.ufal.br/index.php/debateseducacao. Acesso em 29/04/2011.

ZAVAM, A. S. Fanzine: A Plurivalência Paratópica.  Revista Linguagem em (Dis)curso. v. 5, n. 1, jul./dez., 2004. http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0601/01.htm <acesso em agosto de 2005>.

Publicado na revista Imaginário! n. 1. João Pessoa: Marca de Fantasia, outubro de 2011, p.47-57.
……….
Apresentação em slides: Biograficzine-slides

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Sobre Henrique Magalhães

Jornalista, professor, editor e autor de História em Quadrinhos
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